O Último Caso
Do alinhamento dos postes que delimitam a rua sangra uma neve amarelenta. Neve que enseba a noite. Noite que não finge mostras de pressa em amanhecer. Amanhecer soturno e toldado pelo jorrar dos flocos acicatados pelo vento.
Os carros esses, escassos, arrastam uma cauda de faróis vermelhos, afundam-se no eclipse que é a curva, ao fundo, sorvidos por uma cortina de arvoredo. Os sulcos efémeros traçados pelos pneus quase de imediato reconquistados pela neve.
“Esta neve...”
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Ou outra. Ou o que fosse. Tempestades, furacões e terremotos mais os cavaleiros do Apocalipse por atacado. O que fosse. O sol de quando os anos eram curtos e as cores urgentes. O que fosse que permitisse delongar a maratona da vida pelo gotejar de mais uns milímetros, uma hora, duas, um dia, dúzia e meia de semanas.
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Todavia são pálidas como a obstinação as cores do logotipo de quem patrocina esta maratona. Descoradas. Surdas a argumentos ou refutações.
Uma sala de estar. De dimensões reduzidas, porém acolhedora o suficiente. Uma lareira, o crepitar da lenha, o cintilar intermitente da chama nos rostos. Ou não. Opcional, a lareira. Um cadeirão e dois sofás de um lugar apenas. Próximos os sofás. Não de design contemporâneo. Descartar acima de tudo linhas escandinavas e minimalismos. Uma mesa, pequena, discreta, sob a qual é visível uma jarra com flores. Flores que são vitais. Exuberantes, excessivas. Visíveis igualmente, se bem que menos conspícuas, evidências de se tratarem estas de flores recém-chegadas — restos de plástico, tesoura...
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Uma janela. O cair da neve. A iluminação necessariamente artificial e débil. Ou escusada optando-se por supracitada lareira.
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Uma mulher. Acima dos quarentas, abaixo dos cinquentas. Aparência bem cuidada. Blusa, calças. Blazer e cachecol abandonados sobre a mesa. De elegância irrefutável. A dicção escuta-se-lhe pausada, contida. Gesticula pouco, mas sempre que o faz, fá-lo reflectidamente. Sílaba tónica na expressão facial, acento agudo nos olhos. Sentada num dos sofás.
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Um homem. Idade em sintonia com a da mulher, mais ano menos ano. Gravata. Irremediavelmente abstraído no nada que se passa no exterior. De pé. Ausente. Inquieto, impaciente. Cruzar e descruzar de braços, mãos nos bolsos, mãos a dedilhar em objectos. Isqueiro, telemóvel.
Outro homem. Como ela sentado. No cadeirão.
Ela. Olhos em azul-Emily Watson dos quais fluí um quantum de placidez. Olhar dolente que tem o condão de anestesiar as maleitas do mundo. O corpo em ângulos rectos, empoleirado na borda do sofá. Invisível a febre da inquietação que lhe perpassa os nervos e os tendões.
“Pois, com esta neve...”
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Que enuncia por ouvir dizer. Um eco reiterado. Por ter a convicção de que o silêncio uma vez instalado se torna penoso de desarraigar. Que repete numa insistência para a condensação dos vidros. Por oposição ao dela, o dele é um corpo transparente, um corpo que reclama mobilidade, e que por essa razão maior andarilha a esmo como uma cortina que se corre. Titubeante quanto à postura apropriada à ocasião. Menos que um figurante, um adereço.
Vez por outra detém-se a compor o rebanho de objectos que dormitam no mármore morno do parapeito da janela. E a estudar a evolução da neve. Aquela neve.
​Quanto a ele, o outro ele, sentado, resigna-se a contemplá-los aos dois, à vez, num intento determinado de conferir sentido aos seus papéis discordantes. Aguarda recostado no cadeirão de sempre pela emanação da próxima deixa. Bom Deus, as saudades infindas que há-de sentir daquele cadeirão.
Capta-lhe no ar o fio que conduz a intenção. Dela, que volvido um moroso olhar em redor logra estacionar, não sem alguma indecisão, na paisagem lunar suspensa um par de centímetros sobre a cabeça dele. A interrogação no instante em que sai vê-se auxiliada pelo queixo:
“Essa é que a célebre fotografia do local onde ela desapareceu?”
De facto. Se bem que não célebre, não singular.
“Uma de muitas”.
Existiam com efeito várias. Uma legião. Uma ressonância de fotografias na qual uma mesmíssima imagem recorrente se eleva à última potência num jogo de espelhos borgiano.
“A primeira duma sequência na qual ela já não aparece”.
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Quase seguro que não a primeira, vá saber-se, todas idênticas, irrelevante para o caso. Irrelevante per si.
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Irrelevante e ao nível da escala de importância que ela se permite atribuir-lhe. Porque pouco ou nada lhe importa. Ele sabe que pouco ou nada lhe importa. Como ela sabe que ele o sabe. Tão espúria como a serenidade e compostura que enverga tão espúrio o ímpeto de curiosidade que expressa por aquela fotografia emoldurada que por ali estabeleceu residência soma para cima de oito anos.
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É-lhe grato contudo. O mais mísero esboço de trégua ao peso asfixiante do tombar da neve sobre aquela mise-en-scéne a três é acolhida como um lenitivo expiatório.
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Os olhos já descolados da fotografia. Do preto e branco, da linha de mar interposta entre o céu e o ziguezaguear das rochas, do passadiço de flores a antecipar uma lápide ubíqua. E todavia dotada de tão generosa alma que ela é:
“Nunca foi encontrada”.
Não uma interrogação, não uma asserção, não uma cogitação. Um ponto final. Uma adenda, um epitáfio. Não fosse escasso o tempo e uma legenda oportuna que não era todo em todo descabido mandar gravar na moldura.
Não, nunca fora.
“Encontrámos somente a máquina fotográfica”.
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Em rigor, nem isso. Não eles. Um fulano que se dera ao incómodo de se apresentar com a dita máquina na esquadra. Que andavam, ele e meia-dúzia de maníacos, às cinco da matina aos retratos ao sol nascente. Que por um triz não tinha tropeçado no tripé. Que ainda continha o cartão de memória.
“Paisagem, mar, plantas, rochedos. Tudo ali do Capo Testa onde a máquina apareceu abandonada”.
E uma infinidade de fotos que não passariam de ensaios, testes. O encontrar a focagem correcta, o conseguir alinhavar o ângulo mais favorável, a composição, a exposição.
E dela, algumas dela. Presume-se.
“Era muito provável que usasse um controlo remoto, embora a esse nunca o tenhamos encontrado”.
Uma pausa que se alonga o tempo de lhe prescrutar os olhos. Equívocos. Conhece-lhe os vícios o suficiente para detectar a ausência de sincronia entre o olhar morno com o qual o vigia e o sorriso diáfano com que o escuta.
No lado oposto, costas voltadas, pensamento atrofiado pela neve. Imerso num minucioso realinhar passe-partouts. Nada aí que reclame a pertinácia de um exame detalhado. Assim como assim, tudo somado, noves fora, não se depara com razões pungentes para que não prossiga. Prossegue:
“Descobrimos outros cartões de memória num automóvel estacionado não muito longe do local onde a máquina fora localizada”.
Aquilo que então aspirara a primeira centelha de esperança emanada do meio de tal charada não tardara a transmutar-se numa babel de incógnitas. Chegara a dar ares de promissor, viaturas que vêm com essa vantagem das matrículas, dos registos, das identidades. Que topam depressa as manhas aos donos e, quando bem coagidos, acabam a confessá-las sem grandes sobressaltos. Não no caso em pauta.
“Mais do mesmo. Paisagem, mar e rochedos. De diversos locais dispersos ao longo da costa norte. Isola Rossa, Costa Paradiso, se bem recordo”.
Recorda com mais lucidez o confronto com o malogro do beco sem saída. Não expectável a princípio, rua imensa, ladeada de vivendas pomposas. Ao virar da curva, porém, o precipício. Uma mão cheia de nada e outra repleta de coisa nenhuma.
“Centenas e centenas de fotografias e, à excepção dela, não se divisa um único ser humano. Um que para amostra servisse. Nada, zero. Circulámos as fotos por todo lado, a mais completa perda de tempo, não apareceu vivalma que a identificasse. Nem os idiotas do costume, o que parecia ainda mais bizarro”.
Após o que se ergue com algum enfado do seu cadeirão. Retira da parede a fotografia emoldurada. Capo Testa. A aridez do tempo.
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“Havia imensas como esta. Foram as últimas do cartão que foi deixado na máquina. Tiradas por ela ou sabe lá Deus por quem”.
Réplicas daquela. Todas da mesma exacta posição, mesma abertura, mesma velocidade de obturador, mesmo ISO, mesmo tudo, como se a máquina insistisse do tripé em registar os resíduos dum espectro que se esvaíra.
“Ou não terá passado tudo da mais completa miragem. No fim de contas ninguém veio atrás dela”.
De entre os passe-partouts, aos tropeços:
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“E nada, em todas essas fotografias, vos deu, não sei, alguma pista, quero dizer, sobre intenções, sobre o estado de espírito?”
Jamais o seu forte, verbalizar. Quais intenções, qual estado de espírito. Existe lá coisa mais sinuosa e elusiva que uma fotografia. E em modo de epílogo, com todo o teatralismo que a cena reclama, a fotografia de retorno à parede.
Ela questiona-o sobre o carro.
Ele sabe que ela há muito sabe o que há a saber acerca do carro. Retorna contudo à monotonia do cadeirão.
“Apareceu-nos um indivíduo que estranhou um automóvel ali estacionado há várias semanas. Um Panda decrépito que é a imagem de marca de tudo quanto é veículo abandonado em qualquer canto da Sardenha. No lugar do morto os tais cartões de memória”.
Registo em nome de um indivíduo de Santa Teresa, bem falecido e melhor enterrado havia mais dez anos. Família, vizinhos, escusado, a viatura ali aterrada vinda de Marte. Bollo auto, revisione ausentes ou em parte incerta. Seguro idem aspas aspas. Impressões digitais de muitas cores, tamanhos e feitios, no carro, na máquina, no tripé, nos cartões porém sem correspondência alguma no sistema. Nem mortos nem vivos. Qualquer coisa no entremeio, precisamente como ela.
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​“E no final foi o tudo que nos sobrou. Sucata caída do céu e uma miríade de fotografias de uma miragem recuperadas de meia dúzia de cartões abandonados. O meu último caso”.
O azul nos olhos reage automático ao apêndice no remate do parágrafo e depreende que cessara de haver necessidade de questões paliativas.
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O último caso. Em boa verdade também isso não mais que um banalíssimo epitáfio, um rótulo, um post-it. Factualmente, nem sequer um caso. A almejar algo, uma memória difusa mal arrumada na gaveta da obsessão, se não mesmo uma ponta solta, uma incongruência. Arquivado sem que fosse concedido ao diabo o tempo de esfregar um olho. Contenção de custos e acima de tudo a mais indigente carência de estômagos ao dispor com que arremeter contra a horda dos moinhos de vento. Ele próprio o primeiro da lista dos nem lá vou nem faço nada soubesse ao invés desencardir mais nobres motivos para não arredar pé do Capo Testa.
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“A neve parece querer abrandar”.
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É possível. Como é possível de igual modo que seja essa a justifique das lascas de sol que vão pousando aqui e ali no chão a dar forma a um mosaico aleatório, o que enxerta na sala uma tonalidade anémica. Da janela, das entranhas da neve, a recitação dos factos, três sentenças num PowerPoint:
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“Temos que estar lá às onze. E há-de estar perigosa, a estrada. Seria melhor, talvez, não nos demorarmos muito”.
Como preâmbulo os olhos que se munem duma dose suplementar de ternura à medida que se avizinham dele. Depois o corpo inteiro que se lhe reconfigura numa nova estrutura, ainda em ângulos rectos, todavia ajoelhado agora defronte do cadeirão. A timidez que lhe nasce de um sorriso multiplica-se em mitose e desenha-se-lhe no rosto ao mesmo tempo que a mão lhe faz festas no braço. Ele corresponde, acaricia o dela em resposta e aguarda que o diga:
“Se não gostares, procuramos outro sítio. Não é definitivo. De maneira nenhuma”.
Pausa.
“Queremos que seja a tua decisão”.
Pausa.
“É muito bem-conceituado, sabes”.
Pausa.
“E as pessoas sobretudo. Pareceram-nos todos muito afáveis, o que é o mais significativo. As pessoas”.
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Ele acaricia-lhe uma vez mais o braço antes de se erguer:
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“Claro que são”.
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Lá fora a neve exala um último suspiro para dar lugar à cortina de sol amarelenta que se vai agora sub-repticiamente enxertando na sala.
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