Nel Mezzo del Cammin di Nostra Vita
Ela
no poleiro dos dez centímetros do saltos.
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As pernas
que aturam com um estoicismo agastado a dança macabra da saia embruxada pelo vento tórrido.
As mãos
abraçadas numa configuração de rogo.
Os lábios,
um nada dissimulados pelo suplício dos dedos neles pousados, inflamados pelo bâton cor de carne acesa, entreabertos, esboço duma angústia plangente.
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Os olhos
que vertem um pânico embaciado pelo rímel soturno que cinzela em veios negros a palidez do rosto.
O cabelo
drapejado em penas de corvo frenético.
O sol
perpendicular, nascer da tarde com olor a fatalidade, que lhe percorre as veias do pescoço, que se introduz pelo decote mal contido não obstante a austeridade do carreiro de botões da blusa de folhos.
O vento,
o sopro duma rajada mais ébria, que não fora pelo revoar dos cabelos, pelo alvoroçar da saia, nada senão a rigidez estanque dum ícone em expiação.
Ele
ensopado de gotas de suor untuoso que sangram do sol a pique.
A testa,
pela qual escorre esse unto mórbido, e pelas laterais da face por barbear e pelo queixo e pelo pescoço, unto que se acumula na humidade do colarinho, que se mescla com a febre que ondeia no hálito pútrido da tarde.
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O fato
de lã de caxemira, seleccionado para a ocasião, um empastado de carne e fibras num pelejar desigual com o exalar do miasma do Verão.
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A boca
expedita a detectar no cano da pistola um aroma a pó e tabaco. E um ligeiro travo a amêndoas, talvez. Não juraria.
A distância,
cinco, seis metros, e contudo mal a distingue. Acalmara, graças a Deus e aos anjos, se bem que a fase da histeria e do soluçar desgovernado ameaçava ter vindo para ficar.
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Mas não,
calara-se, assim, num repente, para assumir aquela pose de Senhora da Soledade a interceder não se deduz bem por quem, ar de quem vai desfalecer a qualquer segundo.
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Mais abaixo
num mutismo de causar lástima, sem que se lhes discirna outro propósito que não o de compor um tudo nada mais o cenário, uma manada de mirones a encherem-se de pó.
As palavras
que soam como litania perpétua, aqui e acolá entrelaçadas com uns arrebatamentos, ameaças, profecias de mau agoiro, para de imediato se reconverterem numa cadência de jeremiadas introspectivas, pausas hostis, olhares intimidatórios.
A sintaxe
que lhe soa meio esotérica. E a coerência de alguns vocábulos que se dilui no soprar do vento.
Uma filha,
aliciada, abusada sem pejo, humilhada, aviltada.
Já não filha,
apenas o eco reprimido duma cadeia de memórias nebulosas.
A via-sacra
que a precipitou duma falésia, em linha recta, até às ondas vorazes do Golfo di Orosei. E destinos interrompidos, e ilusões e desencantos. Palavras que mesmo com a circunstância do cano duma Beretta a roçar-lhe os dentes não conseguem mitigar a impressão de não se sentirem muito à vontade sempre que extirpadas de um libretto de terceira classe.
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Nem a determinação
que o empreendimento terá acarretado, não despicienda, sendo que a costa se situa um nadinha distante e por estradas de testar a paciência a um santo, mas enfim.
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Nem a tendência neurótica
que as criaturas do Senhor revelam para a falta de pragmatismo no que toca a lidar com contratempos e que invariavelmente as leva a descair para a histrionia.
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O tempo
suspenso, suspensão que se quebra.
A arma
que desfere um tiro solitário.
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O sangue
que esguicha desenfreado e emporcalha a parede, atrás, contra a qual ele se deixa escorregar.
A boca
dela, à distância de cinco, seis metros, que vomita um lamento rasgado com o qual arrasta atrás de si o restante do corpo e que vai cair, na sequência, aos pés do cadáver que repousa de pernas abertas a contemplar os pássaros atordoados pela detonação.
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Na parede,
pormenor que por muito pouco não escapa, já que tendem a ser rápidas estas coisas, atrás, entre sangue e miolos, e com certeza unicamente por coincidência, dá impressão de surgirem algo desfocadas as palavras ‒ L'inferno esiste.
“Achas?”
“Se eu acho? Há dois meses que me mudei de armas e bagagens para o quinto círculo. Juro-te que o teria feito engolir o frasco de xarope, ou que raio de mixórdia é que eles usam agora, se ele tivesse tido a leviandade de querer repetir aquela insanidade mais uma vez. Seis takes para gravar o mais banal close-up de um reles tiro. Andamos todos a gozar? Prima donna de trazer por casa”.
“Sete”.
“Sete quê?”
“Vezes. Sete vezes a pôr e tirar meias de liga de cada vez que que ele me fez ajoelhar naquele chão de matadouro. Ninguém sangra tanto, credo. Não é que isto seja propriamente um Tarantino. Ou não era, quando li o script”.
“Não. Mas é, contas feitas, a experiência mais caótica de toda a minha vida, que não é parca em experiências caóticas, permite que te diga. Experiência que se tudo correr de feição jamais será repetida. Pelo menos se estiver sóbrio da próxima vezes que alguém se lembrar de aparecer com semelhante idiossincrasia. Por sorte a coisa teve que ser rematada à trouxa-mocha porque diz-se por aí que o alminha anda com ideias de ir apresentar isto em Locarno”.
“Querem lá ver que vou ter que arranjar mais espaço em cima da lareira. Queira Deus que combine com o meu Volpi”.
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“Recebeste um Volpi?”
“Por tudo quanto é mais sagrado, finge ao menos que isso não é tudo estupefacção. É tão constrangedor, acredita. De qualquer modo foi noutra vida. Nos dias que correm só me chamam para papéis de Monica Bellucci para Dolce & Gabana. Ora aí tens tu a epítome da femme italienne. Até esta alimária costumava fazer melhor”.
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“Não, senhor. Não costumava coisa nenhuma. Aí é que tu te enganas. Este tem sido coerentemente medíocre a carreira toda. Não está melhor nem está pior, está igualíssimo à negação que sempre foi. Atingiu o nadir logo ao primeiro filme e desde sempre tem-se mantido nesse estágio. Do que dele depender a minha lareira há-de continuar em estado virginal e intocado”.
“Nunca se sabe. Isto agora já pouco ou nada tem a ver com o ser-se bom ou mau actor. Em boa verdade se calhar nunca teve”.
“Ora aí tens”.
“Ah, não. Desculpa. Não era o que eu queria... O que queria dizer era... Esquece. Preciso de mais um destes. Também queres?
“Obrigado, não. Mais Monicas Bellucci para Dolce & Gabana engatilhadas?”
“O Sorrentino parece que quer filmar qualquer coisa do Moravia, mas basicamente quer-me de cu ao léu. Estou velha para essas andanças. O meu primeiro instinto foi mandá-lo... Não te rias. Sei lá, ainda não decidi. Mas temos uma sitcom para o ano, prime-time, vê lá tu. Com a Vittoria Puccini. Ou pelo menos foi assim que mo venderam. Não pagam mal. Digamos que não é Tchekhov nem Ibsen, mas não se pode aspirar a tudo. E tu?”
“Nada no gatilho. Parece vaticinar o expirar duma gloriosa carreira de tédio e imenso fastio. Uma tremenda parede escrita em branco”.
“Olha que não. Vieste bater à porta certa. Se há coisa que muito escasseia por aqui em Orgosolo são paredes em branco. Hás-de encontrar a tua sina escrita por aí num desses murais”.
“Há de facto esperança, como muito bem salientaste”.
“Outra vez não, agora é que doeu fundo. Mea culpa. Mea maxima... E estou tão exausta. Tu porventura não eras um querido que dava boleia a esta estrela cadente até ao hotel? Ou ainda ficas?”
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“Tenho uma esposa impaciente a aguardar-me no término duma longa estrada”.
“E não é que tens”.
“A duas horas daqui”.
“Tão longe?”
“Tão longe”.
“Pois deixa que partilhe contigo uma confidência. Consta que abateram por aqui, esta tarde, um indivíduo muitíssimo mais virtuoso que tu e por muitíssimo menos profanas cogitações”.
“Seis vezes”.
“Sete”.