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Amor à Primeira Vista
“Cor de quê?”
E foi tal e qual, amor à primeira vista. Que certas cores produzem esse efeito, que são imunes a porquês, a interpretações artificiosas.
“Parecem assim, não sei, opalas, não é?”
Era. Pareciam.
Pois que fossem. Opalas, cuja vantagem mor é essa de existirem numa multiplicidade de matizes e tonalidades, o que lhes confere, e não pouco, a elasticidade da lisonja.
Alghero, esvair de tarde, o que não equivale a afirmar-se esvair do dia que por ser Primavera adiantada sobejam ainda umas quantas horas do mesmo pela frente. Há que ser-se preciso, apelar ao rigor. Fazendo-se uso de uma carta em papel húmido e desbotado, Alghero, neste abeirar do crepúsculo aos tantos deste ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ou, querido diário meu, caía o entardecer por conseguinte, o carro de Hélio aclamado já pelo lauto cortejo das nereidas.
Os Martini e tapas, esses sim, terminados. Num afã. Piazza Sventramento sob um sol que se permite escorrer por entre os guarda-sóis e lhe traça riscas no rosto:
“Meus amores, tenho que ir. Não tenho nada que se vista”.
E não se deseja nua uma rainha.
Em abono da verdade eventos de tal natureza nem eram sequer coisa do seu agrado.
Os meus livros, a minha música, dizia. Chegam-me, dizia.
Muito alvoroço, muito frenesim, dizia. Que não, dizia.
Se bem que no caso em pauta, aviadas duas ou três desculpas gelatinosas, acabou até persuadida sem precisão de recurso a grande suor.
“Determinante”.
E incontestável. E outros adjectivos de cinco sílabas extraídos dum dossier trazido para o efeito. Porque a performance da delegação, contra todas as expectativas sãs, excedera, e em muito, o rol de objectivos que Milão lhes impusera. Acrescente-se que não era nada meigo no que toca a pedir, Milão.
“Mérito incondicional”.
Uns minutos antes:
“O teu imprescindível input”.
Uma selecção de vocábulos tão bem conseguida. Chegou inclusive a equacionar se sim ou não uma lagrimita acanhada, porém, cheirou-lhe, e ainda a tempo, que seria querer esticar demasiado a corda.
Já se o imprescindível input tivesse sido arguto o suficiente e aprendido o caminho da conta bancária. Não aprendeu.
Fosse como fosse, ali, no escritório, entre determinantes e imprescindíveis, não deixaram de ser quinze minutos que por uns segundos quase obliteraram o compor, pelo avançar cru da noite, de infinitos Power Points, o desencantar de clientes pelas sendas onde o Judas perdera as botas, o enviar de emails medicantes e vénias de roçar os cabelos pelo chão aos deuses de Milão.
“É uma lembrança simbólica, mas fazemos imensa questão”.
Claro que era. Tudo o que chegava às delegações há muito abandonara a pretensão de aspirar a mais que simbólico. Os bónus, as ajudas de custo e os cartãos de crédito munificentes, as promoções, as vistas desembaciadas acima dos tectos de vidro e de outros mais conspícuos, os carros da empresa vorsprung durch technik, esses nunca se aventuravam muito para lá das planícies do Pó. Contudo, imensa questão que eles faziam.
E pela razão maior de imensa questão fazerem e pela outra, não menor, de não nada ter que se vestisse deixou as colegas na dormência dos Martinis para se consagrar, pouco devota, ao deambular de montra em montra pelas ruelas da velha Alghero.
“Opalas?”
A funcionária, olhos arrastados, a debitar as gemas que lhe afluem à mente por entre o tédio dos últimos clientes do dia, que têm por condão ser os piores, e o enfado dos turistas despejados pelos cruzeiros. A cor das palavras tão ou mais plástica que o sorriso do qual afloram.
“E combinam tão bem com os seus olhos, querida”.
O somatório da vida não mais que uma sucessão monótona de primeiras vezes. Que as há para tudo. Combinar a cor das sandálias com a dos olhos, porque não? De um azul deslavado pela indiferença dos dias, carente desse gás inflamado que torna distintos os meses do ano, que os torna opalas, safiras, ágatas, lápis-lazúli, porque não? Rainha do ano fiscal e de méritos determinantes ou do que mais fosse.
Observou como que à distância de três andares o novelo de cabelos da funcionária que se ajoelhara aos seus pés. Dócil, aquiesceu a que esta lhe desse algumas dobras nas calças de modo a expor uma percentagem maior de pele, fazer sobressair, rutilantes, acariciadas por um afago de sol, as sandálias de tiras encastradas. Deixou-se conduzir encavalitada nuns saltos de afligir um santo até ao espelho, os pés quase nus lacrimejados de opalas, cento e oitenta graus, os calcanhares em cálice.
Trezentos e sessenta graus e não se reconheceu.
Vestido a condizer implicou o desespero de conduzir até Sassari no dia seguinte antes do despertar dos galos e a exasperação de seis horas encafuada em provadores. E regressar a velocidades proibidas mal a tempo da hora implorada no cabeleireiro.
Decisão de méritos mais dúbios revelar-se-ia deixar o carro no lado oposto da cidadela para os lados da Piazza Sulis. Reconheça-se, na ocasião concreta em que estacionou não era de todo o lado oposto, a um pulinho do restaurante. Nem era minimamente suposto que viesse a sê-lo mais tarde. Impulsos.
Aquilo que mais chamou à atenção do recepcionista do hotel que se esforçava sem grande sucesso em arredar o sono das cinco da manhã, quando a observou sair do elevador, foi a pequena estatueta de vidro ou acrílico que ela trazia na mão direita.
Na esquerda, dependuradas pelas tiras do calcanhar, as sandálias. Esquecimento com certeza, àquela hora o corpo reage por estímulos. Tê-la-á pousado quando se calçou. Ao aperceber-se já ela se dissipara na neblina. Em vão foi ainda à porta. Guardou-a no cofre. Quando é importante ou de valor as pessoas dão por falta.
De estatueta de vidro ou acrílico numa mão e copo de champanhe na outra:
“São da cor das opalas, pelo menos foi o que me disseram ontem”.
Ele dentro dos olhos dela, o dedo a enxugar-lhe uma gota de champanhe entalada na comissura dos lábios.
“Cor de quê?”
“São a combinação garantida para a farsa – encómios e champanhe. Não tenho boas memórias”.
Mais que a neblina, o desacerto do vento manifestou-se de imediato ao abrir da porta do elevador. Um remoinhar de papéis e sacos de plástico, resíduos da noite. Um suspiro de renúncia foi tudo o que lhe saiu, para lá da constatação tétrica de que a distância até ao carro é sempre maior no regresso. Neste caso, incomensurável.
Que lhe chamava um táxi. Sem que a mão se aproximasse do telefone. Contempla-a do torpor da cama. A acareação entre a mulher que entrara nos lençóis e a que deles emergira.
Recusou por instinto. O táxi. Bastar-lhe-ia, a ela, pegar no telefone. Ou pedir na recepção ao descer.
“De certeza?”
“É madrugada não tarda”.
As palavras reflectidas do espelho, inconsequentes. Vocábulos ocos de sintaxe. Do espelho no qual ela se estuda maravilhada face à aparição daquelas formas equívocas. A linha do olhar a perseguir o polegar que escorre do pescoço, por entre os seios, sobre a cavidade torácica, diafragma, umbigo até se converter numa mão em concha estacionada sobre o púbis.
“E andar faz-me bem”.
O que para platitude de despedida era tão apropriada como qualquer outra. Uma justaposição de palavras sem revelar mais que uma pulsão mecânica.
E talvez fizesse.
Se bem que que não tanto aos pés.
Contados do exacto instante em que, ao deslizar da porta automática, um amplexo de vento a cingiu, foram precisamente três os minutos que passaram até ao ciciar das primeiras blasfémias.
Cento e oitenta segundos.
O pesponto das tiras de pele que lhe lacera a carne húmida dos pés. O ondear dos doze centímetros de salto sobre a instabilidade do chão tangível. As sandálias a afiançarem-lhe que qualquer ensaio de perambulações e meditações pelo tamanho bem que o andar possa fazer estaria fadado a duração abreviada.
Mui lesta a conceder derrota, do minuto sete em diante as ruas empedradas da cidadela percorridas já em feição de carmelita descalça.
“E quais os planos agora, opal girl?”
“Uma noite sem planos”.
Delicados os pés, pouco talhados para infindas marchas de penitência, propensos, sim, a atrair toda uma legião de artefactos de tortura espargidos pelas ruas das madrugadas de domingo. Impõem-se uma pausa para vinho e mirra na exacta praça onde regularmente havia Martini e tapas.
Algumas das cadeiras, sobejos de outra vida, ainda por ali espalhadas, escravizadas agora pelo abraço de uma corrente de ferro. Senta-se numa. Sobre uma película orvalhada de neblina e noite. Que contagia o vestido. Um frémito de inquietação ascende pelas pernas, pelas vísceras, acoita-se-lhe no peito, tolhe-lhe a respiração. Eco do roteiro pelo qual havia seguido, antes, a mão dele.
Vencidas as últimas centenas de metros, a porta do carro acolhida com uma aflição de beijos.
As ruas desertas, a cadência das rajadas que vão amainando e, bem trancada fora do carro, a frigidez do alvorecer. Dia novo que renasce estremunhado.
Um módico de refrigério concedido ao suplício dos pés que sangram por fim no repouso do tapete.
A sombra da Torre Sulis assume uma forma mais concreta sobre o capot do carro à medida que o sol se faz anunciar com mais coragem. E sobre o rosto dela. Uma risca de torre. Do leitor de CD a voz talhada a nicotina e alfazema de Barbara Carlotti a qual evoca Cannes onde
tout est possible dans les coulisses du festival pénétré d'un vent de scandale.
Surpreende-se porque o julgava irremediavelmente perdido. Quantos anos? Impossível adivinhar a tal hora, as artérias ainda entupidas de Piper-Heidsieck, única reminiscência não simbólica da noite que se extinguia de vez. De estatueta de vidro ou acrílico na mão:
“Sou tremendamente grata a toda a esta equipa sem a qual este ano não teria sido possível”.
Embora fosse. Muito possível. Porque se o dito ano fora conseguido, fora-o apesar da equipa e nada com a equipa. Contudo, nécessité oblige. Simbólico.
Já em Cannes tudo exsudava ainda a aparência do possível. Do tangível. Quantos anos volvidos? Sobrevivera afinal o CD que ele lhe oferecera, e até esse já dado como perdido. Encontrá-lo agora ali, no carro dele. Carro que ela preferia ao seu, mais maneirinho, menos dado a melindres na altura de desencantar um buraco onde o enfiar. Nunca inclinada a desperdícios do santo tempo no que à arte de bem estacionar concerne. Razão pela qual nas ocasiões em que ele viajava para fora era aquele o carro que tendia a utilizar.
Com os resquícios do álcool a marcharem ainda a passo pelo sistema circulatório e o latejar da dor a querer amainar, as frases em francês mole deixam-se morrer em paz de cabeça pousada no volante.
No momento em que desperta, corridos uns minutos, o céu que transmutara mais uma vez, prometia fartura de nuvens e indigência de claridade. E aspergia sobre Alghero uma aragem pastosa e opaca.
As chaves enfiadas na ignição, o gemer do motor a aguardar novas ordens. Ordens que ela ignora. Mais uns minutos hão-de arrastar-se com os dedos a tamborilar no volante ao compasso do CD que canta Trop Tard. Incerta se para a direita se para a esquerda.
“Não, sinto imenso mas não é de todo possível”.
A funcionária irredutível e nada receptiva a argumentos:
“Aliás, eu tive o cuidado de mencionar diversas vezes à sua esposa, na ocasião em que as comprou, que não aceitamos devoluções. Além disso, aqui, vê?, obviamente que já foram usadas”.
Obviamente. Acerca disso não acalentava ele quaisquer dúvidas.
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